domingo, 2 de fevereiro de 2014

As commodities ambientais e a financeirização da natureza.
Entrevista especial com Amyra El Khalili*
 
Por Andriolli Costa

De acordo com o Ministério da Agricultura, durante o ano de 2013 o agronegócio brasileiro atingiu a cifra recorde de 99,9 bilhões de dólares em exportações. Soja, milho, cana ou carne ganham os mercados externos na forma de commodities: padronizadas, certificadas e atendendo a determinados critérios e valores regulados internacionalmente.
Para a economista Amyra El Khalili, no entanto, as monoculturas extensivas não deveriam ser a única alternativa de produção brasileira. A movimentação econômica envolvendo as commodities tradicionais exclui do processo os pequenos e médios produtores, extrativistas, ribeirinhos e as populações tradicionais. Sem grandes incentivos governamentais, sem investimento para atingir os elevados padrões de qualidade nacionais e internacionais ou capacidade produtiva para atingir os mercados, estes permanecem sempre à margem do sistema.
Foi com base no raciocínio da inclusão que a economista de origem palestina criou o conceito de commodity ambiental. Em entrevista concedida por e-mail ao Intituto Humanitas Unisinos – IHU On-Line**, ela aborda a polêmica dos créditos de carbono (uma “comoditização da poluição”), questiona o fornecimento de créditos por Redução de Emissões por Desmatamento (Redd) para o agronegócio e descreve o conceito inicial criado por ela. “Uma commodity tradicional é a matéria-prima extraída do ecossistema, que é manufaturada, padronizada por um critério internacional de exportação adotado entre transnacionais e governos”. Por outro lado, a commodity ambiental “também terá critérios de padronização, mas adotando valores socioambientais e um modelo econômico totalmente diferente”.
Confira a entrevista.
 
 
IHU On-Line - Existe diferença entre comoditização da natureza e financeirização da natureza? Quais?
Amyra El Khalili – Existe, mas uma acaba interferindo na outra. A comoditização da natureza é transformar o bem comum em mercadoria. Ou seja, a água, que na linguagem jurídica é chamada de bem difuso, deixa de ser bem de uso público para ser privatizada, para se tornar mercadoria. A financeirização é diferente, é a ação de tornar financeiro aquilo que é eminentemente econômico.
Isso porque a melhora da qualidade de vida também é uma questão econômica. Uma região onde as pessoas conseguem conviver com a natureza e tem acesso à água limpa, por exemplo, oferece um custo financeiro melhor, onde você vive melhor e gasta menos. Isso também tem fundamento econômico.
IHU On-Line - No caso da financeirização da natureza, o que se encaixaria nessa descrição?
Amyra El Khalili - A nossa obrigação de pagar por serviços que a natureza nos faz de graça e que nunca foram contabilizados na economia, como sequestrar o carbono da natureza, por exemplo. As árvores sequestram o carbono naturalmente, mas para ter qualidade de ar daqui para frente é preciso pagar para respirar. Nessa lógica, aquele que respira precisa pagar pelo preço daquele que poluiu, enquanto este deixa de ser criminalizado e recebe flexibilidade para não ser multado.
IHU On-Line - Você foi a criadora do conceito de commodities ambientais, que é bem diferente da comoditização da natureza. Qual era a sua proposta inicial para o termo?
Amyra El Khalili – Uma commodity tradicional é a matéria-prima extraída do ecossistema, que é manufaturada, padronizada por um critério internacional de exportação adotado entre transnacionais e governos. Os pequenos e médios produtores, os extrativistas e ribeirinhos, entre outros, não participam dessas decisões. O ouro, minério, não é uma commodity enquanto está na terra, é um bem comum. Ele torna-se uma quando é transformado em barras, registrado em bancos, devidamente certificado com padrão de qualidade avaliado e adequado a normas de comercialização internacional.
A commodity ambiental também terá critérios de padronização, mas adotando valores socioambientais e um modelo econômico totalmente diferente. O conceito está em construção e debate permanente, mas hoje chegamos à seguinte conclusão: a commodity ambiental é o produto manufaturado pela comunidade de forma artesanal, integrada com o ecossistema e que não promove o impacto ambiental como ocorre na produção de commodities convencionais.
A convencional (soja, milho, café, etc.) é produzida com monocultura e a ambiental exige a diversificação da produção, respeitando os ciclos da natureza de acordo com as características de cada bioma. A convencional caminha para transgenia, para biologia sintética e geoengenharia; a outra caminha para a agroecologia, permacultura, agricultura alternativa e de subsistência, estimulando e valorizando as formas tradicionais de produção que herdamos de nossos antepassados. A convencional tende a concentrar o lucro nos grandes produtores, já a ambiental o divide em um modelo associativista e cooperativistas para atender a maior parte da população que foi excluída do outro modelo de produção e financiamento.
O Brasil concentra sua política agropecuária em cinco produtos da pauta de exportação (soja, cana, boi, pinus e eucaliptos). A comoditização convencional promove o desmatamento, que elimina a biodiversidade com a abertura das novas fronteiras agrícolas. Nós somos produtores de grãos, mas não existe apenas essa forma de geração de emprego e renda no campo. Quantas plantas nós temos no Brasil? Pense na capacidade da riqueza da nossa biodiversidade e o que nós poderíamos produzir com a diversificação. Doces, frutas, sucos, polpas, bolos, plantas medicinais, chás, condimentos, temperos, licores, bebidas, farinhas, cascas reprocessadas e vários produtos oriundos de pesquisas gastronômicas. Sem falar em artesanato, reaproveitamento de resíduos e reciclagem. O meio ambiente não é entrave para produzir, muito pelo contrário.
IHU On-Line - Como é possível transformar em commodity algo produzido de forma artesanal?
Amyra El Khalili – O termo é justamente uma provocação. Na commodity ambiental utilizamos critérios de padronização reavaliando os critérios adotados nas commodities tradicionais. Por isso cunhei o termo para explicar a “descomoditização”. No entanto, diferentemente das convencionais, os critérios de padronização podem ser discutidos, necessitam de intervenções de quem produz e podem ser modificados. Nas commodities ambientais, o excluído deve estar no topo deste triângulo, pois os povos das florestas, as minorias, as comunidades que manejam os ecossistemas é que devem decidir sobre esses contratos, critérios e gestão destes recursos, uma vez que a maior parte dos territórios lhes pertence por herança tradicional.
Com objetivo de estimular a organização social, cito um exemplo de comercialização associativista e cooperativista bem-sucedida. É o caso dos produtores de flores de Holambra (SP). Além de produzirem com controle e gestão adequados às suas necessidades, a força da produção coletiva e o padrão de qualidade fizeram com que o seu produto ganhasse espaço e reconhecimento nacional.
Hoje você vê flores de Holambra até na novela da Globo. Essa produção, porém, ainda está no padrão de commodities convencional, pois envolve o uso de agrotóxicos. Mesmo assim conseguiu adotar outro critério para decidir sobre a padronização, comercialização e precificação, libertando-se do sistema de monocultura. A produção de flores é diversificada, o que faz com que o preço se mantenha acima do custo de produção, auferindo uma margem de lucro para seus produtores.
Inspirados no exemplo de comercialização da Cooperativa Agrícola de Holambra com o sistema de Leilão de Flores (Veiling), desenvolvemos um projeto de comercialização das commodities ambientais, além de novos critérios integrados e participativos de padronização com associativismo. No entanto, o governo também precisa incentivar mais esse tipo de produção alternativa e comunitária. A Anvisa, por exemplo, exige normas de vigilância sanitária e padrões de industrialização que tornam inacessível para as mulheres de Campos dos Goytacazes colocarem suas goiabadas nos supermercados brasileiros (para além de sua cidade). Quem consegue chegar aos supermercados para vender um doce? Só a Nestlé, só as grandes empresas.
E o questionamento que está sendo feito é justamente esse. Abrir espaço para que pessoas como as produtoras de doces saiam da margem do sistema econômico. Que elas também possam colocar o seu doce na prateleira e este concorra com um doce industrializado, com um preço que seja compatível com sua capacidade de produção. Não é industrializar o doce de goiaba, mas manter um padrão artesanal de tradição da goiabada cascão. Se nós não tivermos critérios fitossanitários para trazer para dentro essa produção que é feita à margem do sistema, elas vão ser sempre espoliadas e não terão poder de decisão. O que se pretende é que se crie um mercado alternativo e que esse mercado tenha as mesmas condições, e que possam, sobretudo, decidir sobre como, quando e o que produzir.
IHU On-Line – O termo commodities ambientais é por vezes utilizado de maneira distorcida, como que fazendo referência às commodities tradicionais, mas aplicada a assuntos ambientais, como os créditos de carbono. De que modo foi feita essa apropriação?
Amyra El Khalili – Ele foi apropriado indevidamente pelos negociantes do mercado de carbono. Eles buscavam um termo diferente da expressão “créditos de carbono”, uma palavra que já denuncia um erro operacional. Afinal, se você quer reduzir a emissão, por que creditar permissões para emitir? Contadores, administradores de empresa e pessoas da área financeira não entendiam como se reduz emitindo um crédito que entra no balanço financeiro como ativo e não como passivo.
Como o nome créditos de carbono não estava caindo na graça de gente que entende do mercado, eles pegaram a expressão commodities ambientais para tentar justificar créditos de carbono. Porque na verdade estavam comoditizando a poluição e financeirizando-a. É o que consideramos prática de assédio conceitual sub-reptício: quando se apropriam das ideias alheias, esvaziam-nas em seu conteúdo original e preenchem-nas com conteúdo espúrio. É importante salientar que esse “modus operandi” está ocorrendo também com outras iniciativas e temas como a questão de gênero e étnicas. Bandeiras tão duramente conquistadas por anos de trabalho e que nos são tão caras.
IHU On-Line - Os defensores da Redução Certificada de Emissão promovida pelos Créditos de Carbono afirmam que apesar desse recurso oferecer aos países industrializados uma permissão para poluir, o governo estabelece um limite para estas transações. Você concorda com tal afirmação?
Amyra El Khalili – Esse controle tanto não é feito de maneira adequada, que desde 2012 há uma polêmica no parlamento europeu de grupos que exigem que a Comunidade Europeia retenha 900 milhões de permissões de emissão autorizadas após o mercado ter sido inundado por estas permissões (cap and trade). São permissões auferidas pelos órgãos governamentais que foram vendidas quando a cotação dos créditos de carbono estava em alta e agora caíram para quase zero.
Então na teoria pode ser muito bonito, mas entre a teoria e a prática há uma distância oceânica. Há também o seguinte: ainda que você tenha o controle regional, a partir do momento que um título desses vai ao mercado financeiro e pode ser trocado entre países e estados em um sistema globalizado, quem controla um sistema desses? Se internamente, com os nossos títulos, às vezes ocorrem fraudes e perda de controle tanto com a emissão quanto com as garantias, como se vai controlar algo que está migrando de um canto para outro? É praticamente impossível controlar volumes vultosos de um mercado intangível e de difícil mensuração.
IHU On-Line - A China e a Califórnia planejam utilizar os arrozais como fonte para créditos de carbono, o que levou a uma reação da comunidade ambiental com o movimento No-Redd Rice. Em que consiste o movimento e por que ele é contrário a este acordo?
Amyra El Khalili – O REDD, a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, é a compra de um título em créditos de carbono sobre uma área de floresta que deve ser preservada. Trata-se de mais um exemplo de financeirização da natureza, pois vincula a comunidade local a um contrato financeiro em que ela fica impedida de manejar a área por muitos anos, enquanto a outra parte do contrato continua produzindo e emitindo poluição do outro lado do mundo.
No caso do arroz com REDD, acontece o seguinte: com o entendimento de que uma floresta sequestra carbono, e que é possível emitir créditos de carbono sobre uma área preservada de floresta, o argumento é que a plantação também sequestra. O transgênico inclusive sequestra mais carbono do que a agricultura convencional, porque a transgenia promove o crescimento mais rápido da planta e acelera o ciclo do carbono. Então qualquer coisa que você plantar na monocultura intensiva, como a cana ou a soja, vai sequestrar carbono também. E, por isso, o agronegócio deseja emitir créditos de carbono também para a agricultura. Podemos dizer que não sequestra? Não, realmente sequestra, mas e quanto aos impactos ambientais?
O movimento internacional contra REDD com Arroz está se posicionando porque isso pressionará toda produção agropecuária mundial, colocando os médios e pequenos produtores, populações tradicionais, populações indígenas novamente reféns das transnacionais e dos impactos socioambientais que esse modelo econômico excludente está causando, além de afetar diretamente o direito à soberania alimentar dos povos, vinculando o modelo de produção à biotecnologia e com novos experimentos bio-geo-químicos.
IHU On-Line - O problema é que, se o crédito de carbono foi criado com o objetivo de diminuir os impactos ambientais, não se pode colocar sob uma monocultura que gera impactos da mesma forma a possibilidade de solução do problema, correto?
Amyra El Khalili – Exatamente. Outra coisa importante é que, mesmo com o conceito commodity ambiental estando em construção coletiva e permanentemente em discussão, hoje nós temos a certeza do que não é uma commodity ambiental. Elas não são transgênicas, nem podem ser produzidas com derivados da biotecnologia — como biologia sintética e geoengenharia. Não são monocultura, não podem se concentrar em grandes produtores, não causam doenças pelo uso de minerais cancerígenos (amianto), não usam produtos químicos, nem envolvem a poluição ou fatores que possam criar problemas de saúde pública, pois estes elementos geram enormes impactos ambientais e socioeconômicos.
A produção agrícola, como é feita hoje, incentiva o produtor a mudar sua produção conforme o valor pago pelo mercado. Então se a demanda for de goiaba, só se planta goiaba. Nas commodities ambientais, não. Não é o mercado, mas o ecossistema que tem o poder de determinar os limites da produção. Com a diversificação da produção, quando não é temporada de goiaba é a de caqui, se não for caqui na próxima safra tem pequi e na seguinte melancia. Se começarmos a interferir no ecossistema para manter a mesma monocultura durante os 365 dias do ano, vamos gerar um impacto gravíssimo.
IHU On-Line – O que é a água virtual e como esse conceito se encaixa na discussão de commodities?
Amyra El Khalili – A água virtual é a quantidade de água necessária para a produção das commodities que enviamos para exportação. No Oriente Médio, ou em outros países em crise de abastecimento, como não há água para a produção agrícola extensa a alternativa é importar alimento de outros países. Quando se está importando alimento, também se importa a água que este país investiu e que o outro deixou de gastar.
O que se defende na nossa linha de raciocínio é que, quando exportamos commodities tradicionais (soja, milho, boi, etc.), se pague esta água também. No entanto, não é paga nem a água, nem a energia ou o solo gasto para a produção daquela monocultura extensiva. A comoditização convencional, no modelo que temos no Brasil há 513 anos, é altamente consumidora de energia, de solo, de água e biodiversidade, e esse custo não está agregado ao preço da commodity. O produtor não recebe este valor, pois vende a soja pelo preço formado na Bolsa de Chicago. Quem compra commodity quer pagar barato, sempre vai pressionar para que este preço seja baixo.
Ainda sobre a água, se é na escassez dos recursos que estes passam a ser valorizados como mercadoria, quais as perspectivas de uma crise mundial no abastecimento hídrico?
Amyra El Khalili – Eu considero a questão hídrica a mais grave e mais emergencial no mundo. Sem água não há vida, ela é essencial para a sobrevivência do ser humano e de todos os seres vivos. A falta de água é morte imediata em qualquer circunstância. No Brasil não estamos livres do problema da água. Muita dessa água está sendo contaminada com despejo de efluentes, agrotóxicos, químicos e com a eminência da exploração de gás de xisto, por exemplo, onde a técnica usada para fraturar a rocha pode contaminar as águas subterrâneas.
Os pesquisadores e a mídia dão ênfase muito grande para as mudanças climáticas, que é a consequência, sem aprofundar a discussão sobre as causas. Dão destaque para o mercado de carbono como “a solução”, sem dar prioridade para a causa que é o binômio água e energia. O modelo energético adotado no mundo colabora para esses desequilíbrios climáticos, se não for o maior responsável entre todos os fatores. Nós somos totalmente dependentes de energia fóssil, e no Brasil temos um duplo uso da água: para produzir energia (hidrelétricas) e para produção agropecuária e industrial, além do consumo humano e de demais seres vivos.
E por que é necessário produzir tanta energia? Porque nosso padrão de consumo é altamente consumidor. Seguimos barrando rios e fazendo hidrelétricas, e quando barramos rios, matamos todo o ecossistema que é dependente do ciclo hidrológico. Caso o binômio água e energia seja resolvido, também será resolvido o problema da emissão de carbono. Quando se resolve a questão hídrica, recompomos as florestas, as matas ciliares, a biodiversidade. O fluxo de oxigênio no ambiente e a própria natureza trabalhará para reduzir a emissão de carbono. Se não atacarmos as causas ficaremos circulando em torno das consequências, sem encontrarmos uma solução real e eficiente para as presentes e futuras gerações.
 
* Amyra El Khalili é colaboradora da Pastoral da Ecologia. Economista graduada pela Faculdade de Economia, Finanças e Administração de São Paulo. Atuou nos Mercados Futuros e de Capitais como operadora da bolsa, abandonou o mercado financeiro para investir seu tempo e energia no ativismo. É idealizadora do projeto da Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais, fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z e editora da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras). É autora do e-book gratuito Commodities Ambientais em missão de paz - novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe (São Paulo: Nova Consciência, 2009).
** O Instituto Humanitas Unisinos – IHU é um órgão transdisciplinar da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS, que visa a apontar novas questões e buscar respostas para os grandes desafios de nossa época, a partir da visão do humanismo social cristão, participando, ativa e ousadamente, do debate cultural em que se configura a sociedade do futuro.
Fundado em setembro de 2001, por ocasião do Simpósio Internacional O Ensino Social da Igreja e a Globalização, o IHU desenvolve sua reflexão e ação a partir de cinco grandes áreas orientadoras:
• Ética
• Trabalho
• Sociedade Sustentável
• Mulheres: sujeito sociocultural
• Teologia Pública.
Dessa forma, o IHU quer contribuir, por meio de atividades, simpósios e publicações transdisciplinares, na realização da missão da Unisinos como universidade jesuíta, que busca com denodo tornar efetiva a missão da Companhia de Jesus da diaconia da fé, da promoção da justiça e do diálogo cultural e inter-religioso.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A captura corporativa da COP19
Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, Varsóvia, Polônia
Por Amyra El Khalili*
 
A campanha contra a financeirização e mercantilização da natureza empreendida por centenas de Ongs, movimentos sociais, redes, coletivos e associações de todo o mundo, tem origem nas sucessivas crises do capitalismo pós-moderno enraizado no modelo neoliberal. Neo, significa novo; liberal, liberar. O neoliberalismo defende o livre mercado sem a mão pesada das políticas de comando e de controle dos governos nacionais e internacionais ou de regras que promovam o “travamento” dos mercados financeiros.
Adeptos das teorias de que as forças dos mercados se autorregulam, os neoliberais adotaram políticas de substituição do papel dos Estados por corporações da iniciativa privada. Onde o Estado deveria agir como os setores de educação, saúde, prestação de serviços (distribuição e tratamento de água, esgoto, energia, comunicação, mineração), são tais setores entregues às corporações privadas em muitos países para fazerem a gestão financeira e administrativa. Assim sendo, privatizam-se os lucros e socializam-se os prejuízos. Se o Estado promovia, em muitos momentos, a redução do “crescimento econômico” por não poder exercer também o papel que caberia ao mercado, a entrega do patrimônio e dos serviços públicos criou distorções e conflitos entre o verdadeiro papel do Estado, colocando em dúvida os motivos que levaram a sua relação tendenciosa com os interesses dos mercados, particularmente, o mercado financeiro.
A ação de tornar financeiro tudo aquilo que é eminentemente econômico, a financeirização e, a mercantilização, ação de tornar mercadoria aquilo que não deveria ser, por questões éticas, mercadoria, está propiciando uma nova modalidade de instrumentos e contratos  através dos mercados financeiros, que pretendem tornar bens , antes considerados fora da rota dos estudos de bens e serviços econômicos, em mercadorias. Esses bens são denominados  “bens difuso” – bens de uso público ou “bens comuns”.
O bem ambiental, conforme explica o art. 225 da Constituição, é “de uso comum do povo”, ou seja, não é bem de propriedade pública, mas sim de natureza difusa, razão pela qual ninguém pode adotar medidas que impliquem gozar, dispor, fruir do bem ambiental, destruí-lo ou fazer com ele de forma absolutamente livre tudo aquilo que é da vontade, do desejo da pessoa humana no plano individual ou metaindividual. 
 
Ao bem ambiental é somente conferido o direito de usá-lo, garantido o direito das presentes e futuras gerações. 
 
A declaração “Não a compensação da biodiversidade!” (1), denuncia essa apropriação indevida do bem ambiental pelas corporações com a conivência e aval dos Estados –  a biodiversidade e dos serviços que a natureza produz gratuitamente.
O ecohistoriador e ambientalista, Prof. Dr. Arthur Soffiati, nos alerta para os perigos desta nova  tendência do capitalismo neoliberal:
 
“Esta nova tendência é a de transformar toda a natureza potencial e utilitariamente em mercadoria. Assim, abre-se caminho para o capitalismo explorar o trabalho gratuito que a natureza exerce com ou sem sociedades humanas dependentes dele. “Você quer oxigênio? Pague pela fotossíntese aqui, à empresa que ganhou do estado a licitação para explorá-la”.
 
Mas o neoliberalismo, que, pasmem, tanto fascinou o intelectual francês Michel Foucault no final de sua vida, vai mais longe ainda. Quanto mais profunda for a crise ambiental provocada pela sociedade industrial, mais oportunidades de negócio se abrem. “Não vamos combater as mudanças climáticas para retornarmos às condições que o Holoceno naturalmente nos proporcionou, se fizermos isso, vamos perder dinheiro”. Se não é este o discurso dos negociantes, é este seu pensamento.”
 
A declaração “Parem com a aquisição corporativa e expansão dos mercados de carbono na COP19 agora! “ (2) assinada por mais de 135 grupos, movimentos e redes de todo o mundo, denuncia a captura corporativa da COP19 pelas mesmas empresas que lucraram com a crise climática e foram também os responsáveis por ela. A União Européia e os grandes poluidores estão ignorando efetivas ações climáticas para promover a expansão dos mercados de carbono na COP19.
 
Esse movimento internacional denuncia também que os players (jogadores) do mercado de carbono que realizaram lucros com as falhas da desregulamentação do Comércio de Emissões da União Européia,  o maior sistema em atividade no mundo, estão pressionando para se salvarem da redução drástica das cotações dos créditos de carbono que vem apresentando baixas após sucessivas quedas de preços. Desta forma, prenunciam a formação de um mercado global que interligariam os sistemas de comercialização entre países, ainda que o mercado de carbono tenha se mostrado, por mais de 15 anos, ser ineficiente e se prestado a atrair todo tipo de irregularidades e fraudes. Há quem diga que as fraudes estão desconectadas do Comércio de Emissões da União Européia – EU ETs, como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Tal afirmação ou é  ingenuidade ou as pressões para defender os interesses dos players estão provocando um discurso dúbio e pretensiosamente confuso para iludir  investidores entre outros possíveis atores deste mercado.
 
É flagrante a relação duvidosa entre governos e corporações com negociações paralelas em reuniões previamente agendadas na COP19. Já se vão 20 anos sem ações efetivas para combater as mudanças climáticas.
 
É chegada a hora de acabar com o Comércio de Emissões da União Européia que só tem causado problemas e conflitos com comunidades tradicionais, povos das florestas, campesinos entre outros com políticas desastrosas e que somente alimentaram a especulação financeira em plena crise econômica na Europa e nos EUA. Esta crise do capitalismo mundial que tem quebrado países, vem adotando também políticas de austeridade, afetando diretamente a qualidade dos serviços públicos com desemprego e desesperanças. (3)
 
As declarações “Parem com a aquisição corporativa e expansão dos mercados de carbono na COP19 agora! e “ Não a compensação da biodiversidade!”  estão abertas para receberem assinaturas de organizações, grupos, redes, associações e coletivos.
 
Nossa posição é a de endossar as declarações com conhecimento de causa,  sobretudo com  histórico e trajetória comprobada desta autora que vos escreve, nos mercados futuros e de capitais.
 
Notas:
(1)   Declaração “ Não a compensação da biodiversidade”.

(2)   Declaração “Parem com a aquisição corporativa e expansão dos mercados de carbono na COP19 agora! “.
 
(3)   Declaração É hora de desmontar o ETS!
 
* Amyra El Khalili é economista, autora do e-book "Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe". São Paulo: Nova Consciência, 2009. 271 p. Acesse gratuitamente www.amyra.lachatre.org.br

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Mais Vida Menos Lixo

Nota da Pastoral da Ecologia da arquidiocese de São Paulo sobre a gestão dos residuos domesticos na cidade.

No tempo de Cristo o lixo ja era considerado um problema que piora a qualidade de vida das pessoas. No Evangelho escrito por Mateus (Mt 3, 12 e 18, 8-9) ele fala de um lugar chamado "Geena" onde há um fogo eterno que consome tudo aquilo não pode ser purificado. Esse lugar, é detectado historicamente como o deposito de lixo da cidade de Jerusalém para onde todos os seus habitantes levavam a sua carga de lixo. E, para que esse depósito não ficasse tão grande a ponto de colocar em risco a saúde das pessoas, misturava-se pequenas quantidades de enxofre ao lixo e depois se ateava fogo. Ocorre que, novas cargas de lixo chegavam ao local antes que o fogo consumisse totalmente a carga anterior e o depósito de lixo tornou-se assim um lugar de fogo eterno onde se queimava tudo aquilo que não prestava mais. Esse foi o fato que alimentou a mais forte ideia do inferno como um lugar de fogo eterno onde se queima inpiedosamente todas as almas impuras.

O lixo é um dos maiores problemas que afligem a humanidade. Nos grandes centros urbanos como São Paulo milhares de toneladas de lixo são confinadas diariamente em aterros sanitários, lixões, margens de córregos, estradas, terrenos baldios, becos e fundos de quintais. Ele polui a terra onde é diretamente depositado e a torna inutilizável por centenas de anos (grande parte da cidade está construída sobre terrenos contaminados); o chorume que escorre do lixo se infiltra pela terra e contamina os córregos, lagos, represas quanto e lençois freaticos subterrâneos (há indícios de que o aquifero Guarany, maior reservatório subterraneo de água do mundo e que está parcialmente localizado embaixo da cidade de São Paulo, já esteja recebendo contaminantes oriundos do lixo); finalmente, por meio de suas reações quimicas que produzem gases tóxicos e cancerigenos como o metano e o arsenio, o lixo também contamina o ar que as pessoas respiram. A Organização Mundial da Saúde – OMS, reconheceu em relatorio recente que o ar que se respira nas grandes cidades provoca cancer e doenças respiratorias letais. O simples fato de morar perto de um aterro sanitario aumenta em 20% as chances de uma pessoa contrair cancer.

A cidade de São Paulo produz aproximadamente 20 mil toneladas de lixo residencial por dia que passam pelo sistema oficial de pesagem. Para a maioria das pessoas esse é um problema invisível, elas pensam que o problema não existe porque acreditam que a prefeitura dá uma destinação correta ao lixo que é recolhido da calçada, mas não é bem assim. Para começo de conversa existe muito lixo que não é recolhido pelas concessionarias e acabam emporcalhando as vias publicas e contaminando os mananciais. A parte que a prefeitura recolhe é transportada e depositada, sem nenhuma forma de tratamento, em um aterro sanitario que, como a propria palavra diz, é um grande buraco onde a prefeitura esconde o lixo e joga terra em cima. Para construir um desses aterros a prefeitura destruiu em 2010 uma área de mais de um milhão de metros quadrados de mata atlantica na APA Cabeceiras do Aricanduva que a população local preferia ver transformada em um parque ecologico. Em menos de três anos o aterro já está se esgotando, a prefeitura nem realizou as obras de compensação do aterro construído e já quer construir outro. Se a cidade não mudar a politica de aterros, em um futuro proximo a cidade precisará jogar lixo na Mata do Carmo, na Serra da Cantareira, na APA Capivari Monos, no Parque do Estado e em qualquer lugar que tenha um restinho de natureza.

Fieis à nossa missão de jardineiros de Deus (Gn 2, 15) não podemos nos conformar com soluções velhas que beneficiam apenas os eternos empresarios do lixo, por isso elaboramos, junto com os movimentos populares e assessoria independente da prefeitura e de suas concessionárias, uma proposta de gestão de resíduos em que o lixo recolhido deve ser tratado: separado; reciclado; convertido em energia; combustíveis; adubos; fertilizantes; e uma infinidade de materias primas e produtos com alto valor agregado. Para o aterro deve ser destinado apenas aquela parte dos resíduos que ainda não pode se reciclada (menos de 10% do total). Para implantar esse novo sistema será necessário quebrar o monopolio dos aterros sanitarios e permitir que diferentes tecnologias de tratamento de resíduos, inclusive de sua parte orgânica, também possam participar das licitações.

A cidade não pode ficar refem dos aterros sanitarios, a luta contra o lixo requer um esforço muito grande e deve contar com a colaboração de todas as tecnologias e alternativas disponíveis para a minimização de seus impactos negativos. O novo sistema não requer a destruição de uma nova área a cada 5 anos para confinar o lixo; deverá incentivar as cooperativas de catadores; criar milhares de novos empregos; transformar uma atividade dispendiosa para a prefeitura em uma atividade lucrativa e reduzir a demanda pela extração de novas materias primas da natureza.

São Paulo não precisa de mais aterros sanitarios. Precisa é garantir o direito constitucional de um ambiente saudável para a sua população.


Pastoral da Ecologia
 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Escola Nacional Florestan Fernandes




Agentes da Pastoral da Ecologia da Arquidiocese de São Paulo participaram com outros grupos de convidados, de uma visita à Escola Nacional Florestan Fernandes na cidade de Guarrarema em São Paulo. A Escola é fruto da cooperação de vários movimentos sociais populares dentre os quais se destaca o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
Lá ouvimos uma aula/debate do Professor Francisco José Névoa sobre o Partido Comunista Português, vimos uma apresentação sobre a história e as atividades da Escola e conhecemos suas instalações. Toda sua construção, desde os projetos técnicos,  foi realizada com a mão-de-obra voluntária de mais de mil trabalhadores entre os anos 2000 e 2005. Até hoje seu custeio depende da solidariedade de pessoas, movimentos populares e entidades sindicais e seu funcionamento se dá por meio do voluntariado que inclui mais de 500 professores provenientes de diversos países. Graças a essa rica experiência, a Escola se tornou uma referencia mundial em formação superior nas áreas de Filosofia Política, Teoria do Conhecimento, Sociologia Rural, Economia Política da Agricultura, História Social do Brasil, Conjuntura Internacional, Administração e Gestão Social, Educação do Campo e Estudos Latino-americanos. Tudo direcionado para a formação de militantes dos movimentos sociais populares.
A visita à Escola é realizada uma vez por mês pela Associação dos Amigos da Escola Florestan Fernandes e a participação da Pastoral da Ecologia é parte do programa de formação permanente do Curso Pastoral de Educação Ambiental que complementa o conteúdo das aulas presenciais com atividades de campo como essa.
A Pastoral "aprovou" a escola e recomenda a visita. É um belo exemplo das coisas maravilhosas que a solidariedade das pessoas humildes podem construir, não deixe de visitar.
Maiores informações podem ser obtidas na página da Associação dos Amigos da Escola Florestan Fernandes:

http://amigosenff.org.br/site/node/5

quinta-feira, 14 de março de 2013

Francisco



 
O conclave que elegeu o Papa Francisco produziu algumas surpresas que foram acolhidas pelo mundo católico como sinais da presença e ação do Espírito Santo, apontam para uma benéfica conversão na cúria romana e renovam a esperança e o fervor dos fiéis.
A eleição de um papa que em momento algum, desde a renúncia de Bento 16, figurava nas listas dos cardeais papáveis construídas pelos “vaticanistas” e oportunamente divulgadas pela imprensa, revela que o espírito humano ainda é um recôndito imperscrutável onde Deus pode agir livremente.
Um papa da América Latina inclui um olhar diferente sobre os desafios da Igreja no mundo globalizado e abre a possibilidade de conversões profundas e duradouras na vida da Igreja.
A adoção do nome Francisco em uma clara referencia a São Francisco de Assis e o estilo de vida pessoal simples que marcou sua ação pastoral são indicadores de como será o seu pontificado.
A simplicidade da sua apresentação pedindo as orações do povo em seu favor antes de rezar por ele mostra a consciência de uma tarefa difícil, cuja realização satisfatória depende da comunhão fraterna entre o clero e o laicato.
Com todos esses indicadores a Pastoral da Ecologia soma-se aos católicos do mundo inteiro e reza para que Francisco conduza a Igreja com os valores adotados pelo Santo: oração, humildade, pobreza e muito, muito cuidado com a natureza cujos elementos e criaturas foram elevados por ele à categoria de “irmãos”.
Que assim seja!

sábado, 2 de março de 2013

A sarça ardente e a santidade do planeta




A mensagem ambiental de muitos textos do Antigo e do Novo Testamento fica mais evidente quando a leitura se realiza a luz da teologia da criação contida no livro de Gênesis. (ver “A missão dos cristãos nos desafios ambientais”).
Um desses textos é o episódio da sarça ardente narrado no livro do êxodo (Ex 3,1-5). A interpretação habitual dessa leitura está sob a ótica da manifestação do poder de Deus e da afirmação de sua santidade, atributos necessários para encorajar Moisés a assumir o desafio de liderar seu povo na missão que está prestes a receber. Nessa releitura transparece que o cuidado com o meio ambiente integra desde o início a missão de libertação do Povo de Deus. O relato se inicia assim:
Apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Conduziu as ovelhas para além do deserto e chegou ao Horeb, a montanha de Deus.*
A travessia do deserto é uma simbologia indicativa de que a rotina de Moisés está para ser quebrada. Na base dessa decisão provavelmente estava a escassez de comida, água e a esperança visionária de que além do deserto haveria uma situação melhor. Foi uma atitude ousada e de grande coragem porque se nada encontrasse, Moisés e seu rebanho poderiam ficar sem forças para retornar. Como motivação Moisés tem diante de si a montanha de Deus e assim sua decisão se caracteriza também como um testemunho de fé e entrega total aos desígnios de Deus. Essa experiência de conduzir as ovelhas pelo deserto foi ainda um anuncio e um importante treinamento para a travessia do povo de Deus que seria liderada por ele. Foi nesse contexto e ambiente extremo onde a vida experimenta seus limites que Moisés presenciou a manifestação de Deus.
O anjo de Iahweh lhe apareceu numa chama de fogo, do meio de uma sarça. Moisé olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia.
Nessa manifestação Deus se manifestou a Moisés utilizando-se de dois elementos naturais, o fogo e a sarça. O fogo é um símbolo teofanico que desde as épocas mais remotas está associada à manifestação da presença de Deus e a sarça é, por dedução, um espécime da flora local. A forma como a manifestação de Deus ocorreu é bastante educativa, Ele utilizou um elemento da natureza (sarça) para realizar o sinal de sua manifestação (fogo) mas realizou esse evento sem consumir a sarça, assim evidenciou que Ele não é um consumidor da natureza e mostrou para Moisés que ao utilizar os elementos naturais não deve consumí-los, destruí-los ou esgotá-los. Moisés, porém não compreendeu essas coisas imediatamente, em princípio parece não percebido o fenômeno como uma manifestação divina mas apenas como algo misterioso:

“Então disse Moisés “Darei uma volta e verei este fenômeno estranho; verei porque a sarça não se consome”

O mistério que despertou a curiosidade de Moisés realizou o propósito divino, fez com que ele se aproximasse de Deus.

Viu Iahweh que ele deu uma volta para ver. E Deus o chamou do meio da sarça. Disse: “Moisés, Moisés.” Este respondeu: “Eis-me aqui.”

Quando Moisés chegou perto o suficiente Deus se manifesta de forma mais familiar e convincente, chamando-o pelo nome. Moisés compreendeu subitamente o que estava ocorrendo e, consciente da presença de Deus, respondeu colocando-se humildemente a disposição. O que Deus fala em seguida é ambientalmente muito impactante:

Ele disse: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa.”

Tirar as sandálias é atitude de reverencia e respeito diante de alguém que se considera sublime. Mas Deus não pediu esta atitude de reverencia e respeito para si, e sim para a terra. Certamente Deus já sabia o quão respeitoso Moisés seria para com Ele, por isso pediu a Moisés para reconhecer a santidade da terra e pautar sua relação com a ela com o mesmo respeito, carinho e cuidado que Lhe dedicava.
Todo esse cuidado com a terra (e com a sarça) é importante porque se trata de realizar a primeira missão que Deus confiou ao Homem no relato javista da criação e também porque será útil para retirar do deserto todos os víveres necessários para a grande travessia do povo. Assim, o sentido da palavra terra neste episódio assume o sentido de crosta terrestre, ambiente comum onde as montanhas se apóiam, o mar se agita, os rios escoam, os vegetais germinam e crescem, a vida se diversifica e a sociedade humana se desenvolve. Sob esta ótica, a santidade da terra pisada por Moisés se estendeu para todo o planeta e a missão salvifica do povo de Deus agora  inclui todos os cuidados que se deve ter com a Terra.

* Todas as citações foram extraídas da versão impressa da Bíblia de Jerusalém.

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domingo, 17 de fevereiro de 2013

A missão ambiental da Igreja no mundo



Missa no Morro do Cruzeiro em 5/6/2010
A ação da Igreja em defesa do meio ambiente está amplamente fundamentada nas três fontes teológicas que alimentam a vida espiritual e a ação da Igreja no mundo: o Magistério, a Tradição e as Sagradas Escrituras. Em sua mensagem para a celebração do dia mundial da paz em 2007, o Papa Bento XVI escreveu:

“A experiência demonstra que toda a atitude de desprezo pelo ambiente provoca danos à convivência humana, e vice-versa. Surge assim com mais evidência um nexo incindível entre a paz com a criação e a paz entre os homens. Uma e outra pressupõem a paz com Deus.”

Está aqui uma visão revolucionária que transcende o conceito antropocêntrico que coloca o homem como senhor de todas as coisas criadas, e aponta para uma visão biocêntrica em que o pleno desenvolvimento humano depende da coexistência pacífica e equilibrada com todos os demais elementos da criação.

O Documento de Aparecida, promulgado em maio de 2007 no encerramento da V Conferencia Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, convoca os cristãos católicos para agirem em comunhão e com determinação diante dos problemas ambientais que nos desafiam, dizendo:

“Não permitamos que nosso mundo seja uma terra cada vez mais degradada e degradante”.

A consciência atual do magistério da Igreja Católica leva em consideração as informações técnicas apresentadas pelos especialistas no assunto, mas se apóia com mais propriedade nos sólidos testemunhos deixados por cristãos notórios ao longo da história do cristianismo, como por exemplo, São Francisco de Assis, citado na mencionada Carta do Papa Bento XVI.

São Francisco, inspirador e patrono das Pastorais da Ecologia, nasceu em uma próspera família de comerciantes na cidade de Assis em 5 de julho de 1182 e, tendo experimentado o conforto proporcionado pela riqueza material, contrariou as expectativas da sua família e trocou a promissora carreira dos negócios por uma vida humilde de trabalho manual e contemplação. Reportava-se aos elementos da natureza como irmãos por entender que a plenitude da vida não depende da acumulação de riquezas, e sim da convivência pacífica e respeitosa entre todos os elementos criados.

Mas, com certeza são das Sagradas Escrituras, fonte primeira da teologia cristã, que se alimentam tanto a tradição quanto o magistério. O relato javista da criação, no livro de Gênesis, é um dos mais belos textos ecológicos que nos convida a repensar todos os paradigmas da civilização contemporânea. Ali, concomitante ao ato da criação, logo depois de ter criado o ser humano, Javé Deus plantou um jardim onde dispôs de forma harmoniosa, as fontes de água, os animais e todas as espécies de árvores formosas para ver e boas para comer. Ora, o plantio de um jardim supõe um projeto pensado minuciosamente para satisfazer os anseios do espírito e não apenas as necessidades do corpo. Assim, o jardim criado Por Deus é um lugar especial onde também Ele se sente bem e em comunhão com suas criaturas. No centro do seu jardim, contrariando nosso arraigado conceito antropocêntrico, ele colocou a árvore da vida e então tomou o ser humano que havia criado e o colocou no Jardim para cultivá-lo e guardá-lo, assim, recebemos do Criador a nossa primeira e mais sublime missão: cuidar do jardim criado, para que nele, todas as criaturas possam viver em harmonia entre si e com o criador. E, para que pudesse realizar a contento sua tarefa, o ser humano recebeu de Deus um mandamento que contém uma permissão e uma proibição:

“Podes comer de todas as árvores do jardim, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer.” (Gn 2, 15-16)

Nesse relato transparece a interdependência virtuosa dos seres criados: a árvore é a guardiã da vida; a vida da árvore é confiada aos cuidados humanos; para viver, a criatura humana pode se alimentar da árvore da vida; o consumo humano, porém, deve respeitar um limite que assegure as condições de reprodução da vida da árvore. Ao se colocar no centro da criação e se proclamar conhecedor do bem e do mal o ser humano rompeu com esse equilíbrio virtuoso e iniciou um estilo de vida fundamentado no consumo excessivo e no desperdício que explora os serviços naturais acima de seu limite de segurança e provoca a maioria dos problemas ambientais que nos afligem atualmente.

À luz da teologia da criação ganha grande relevância ecológica o estilo de vida humilde adotado e recomendado por Jesus ao longo da sua vida. O seu seguimento além de ser um exercício de elevação espiritual torna-se imprescindível para promover o equilíbrio do ecossistema planetário. Ficam algumas citações dos Evangelhos que exaltam a vida humilde e questionam a riqueza e o desperdício:

“Olhai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, o vosso Pai celeste os alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas?” (Mt 6,26);


“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus, depois vem e segue-me” (Mt 19, 21);


“As raposas tem tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 58);


“Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, pois o operário é digno do seu sustento” (Mt 10, 9-10).